Durante a história do pensamento geográfico, diversos autores se propunham a um esforço teórico para equilibrar sob o escopo de uma mesma ciência os campos tão diversos da Geografia.
Das análises, algumas são particularmente relevantes.
Em “Um lugar para a Geografia: contra o simples, o banal e o doutrinário”, Paulo César da Costa Gomes defende que este problema epistemológico seria resolvido a partir de uma mudança da perspectiva da definição da ciência geográfica. Sai de cena o espaço geográfico como objeto de estudo, e se propõe que a particularidade da Geografia estaria na pergunta de partida.
Quando visualizamos um “problema geográfico”, devemos nos perguntar a ordem espacial do mesmo, independente de se o que é analisado são camadas sedimentares em uma rocha ou as vias que compõem uma cidade.
Aqui, o peso maior está no modo de visualizar o problema do que no problema em si.
No aflorar da Teoria Geral dos Sistemas e na sua aplicação no escopo da Geografia, o Geossistema, o campo físico e humano se viam enquadrados sob a mesma ótica através do conceito de Paisagem.
Sotchava, por exemplo, na década de 1960 trabalha com a Paisagem como conceito fundamental, capaz de sintetizar a integração dinâmica entre elementos do homem e da sociedade. Utilizou estes estudos na prática do planejamento territorial da União Soviética.
Bertrand, representante da escola francesa, por sua vez, apresenta, em seu modelo do geossistema, a composição de três esferas principais: o Potencial Ecológico, a Exploração Biológica e a Ação Antrópica, este último entendido como um agente de desequilíbrio.
O elemento antrópico, biológico e físico aparecem na composição da tríade bertrandiana, evocando a inter-relação dos fatores na composição de um sistema natural.
Se o entendimento do campo físico com sua relação com o humano ficava mais claro com a ideia de geossistema, a leitura da sociedade poderia ser apoiada sob o paradigma da formação sócio-espacial.
A formação sócio-espacial, originada através de um refinamento da noção marxista de formação econômico-social, é o que podemos compreender como a possibilidade realizada do Modo de Produção.
O Modo de Produção, por sua vez, é o modo de organização da sociedade gestada através da associação de graus de desenvolvimento de forças produtivas e de relações de produção. Assim, desde o desenvolvimento das civilizações, temos uma sequência de “fases”: Comunismo Primitivo, Escravista, Feudal, Capitalista e, finalmente, Socialista.
A formação sócio-espacial – concreta e específica – seria o modo como este modo de produção – geral e abstrato – ocorreria na sociedade.
Certamente, todo este caminho percorrido, através de um esforço teórico de diversos pensadores, auxiliou no entendimento daquilo que a Geografia estuda. Mas, se as discussões teóricas se mostram assim intensas, como as ‘caixinhas’ da ciência geográfica permanecem tão separadas?
Uma hipótese: o desenho organizacional das universidades
Analisando o desenho organizacional dos cursos de Geografia em determinadas universidades, percebemos que, em sua formação, o geógrafo tem embutido uma clara polarização entre o campo físico e o campo humano da Geografia.
Como maneira de apurar esta possível dualidade, vejamos como se organizam os cursos de pós-graduação de algumas universidades brasileira.
É comum, em boa parte das universidades, a divisão do programa de pós-graduação em duas áreas de concentração bem claras: uma para aqueles interessados na Geografia Física e outra para aqueles interessados na Geografia Humana.
Na UFMG, por exemplo, são duas as áreas de concentração: Organização do Espaço e Análise Ambiental.
A primeira área, conforme o site da universidade, debruça-se, especialmente , sobre a “produção do espaço, teoria e prática”. Já a segunda, o foco é, precisamente, a “geografia física”.
Na UFPA, ambos as áreas de concentração remetem o estudo da Amazônia. Todavia, ainda aqui, vemos uma orientação dualista. De um lado, temos Dinâmicas Territoriais na Amazônia e, do outro, Dinâmica Socioambiental e Recursos Naturais na Amazônia.
Na UFSC não é diferente. As áreas de concentração são: Desenvolvimento Regional e Urbano e Utilização e Conservação de Recursos Naturais.
Caso o aluno tenha interesse de uma área voltada ao uso de geotecnologias na Geografia, encontrará uma linha de pesquisa apenas na Pós-Graduação em Engenharia Civil.
O caso da USP, todavia, é emblemático.
Por lá, não somente áreas de concentração diferentes separam Geografia Física de Humana, mas também Programas de Pós-Graduação distintos.
Existe o Programa de Pós-Graduação em Geografia Física (PPGF) e o Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana (PPGH).
Na UFPE, na UFPR e na UnB, todavia, temos um cenário diferente. As áreas de concentração são únicas. São intituladas, respectivamente, “Regionalização e Análise Regional”, “Espaço, Sociedade e Ambiente” e “Gestão Ambiental e Territorial”.
Por fim, no site oficial do curso de Graduação da UNILA, temos uma informação no mínimo curiosa:
“A concepção que norteia o curso entende a Geografia como sendo única – humana – tendo foco essencial na compreensão das dinâmicas que caracterizam as manifestações concretas do espaço (lugar, região, território e paisagem)”.
Uma consequência: a compartimentação da disciplina no Ensino Médio
Uma consequência que, ao mesmo tempo retroalimenta este pensamento dualista se dá na organização dos conteúdos da disciplina de Geografia no Ensino Médio.
Se perguntarmos para qualquer professor que liste os primeiros conteúdos que vêm à cabeça para uma aula no primeiro ano do ensino médio, provavelmente as respostas irão variar entre tipos de rochas, classificação climática brasileira ou a diferença entre foz em delta e foz em estuário.
Agora, faça a mesma pergunta, mas se referindo aos conteúdos do segundo e terceiro ano. As respostas serão algo próximo a “Guerra Fria”, “Fases dos Capitalismo” ou “Fases do Crescimento Demográfico”.
Aparentemente, este tipo de organização pode ser vista como “natural”. Mas, em seu cerne esconde-se um risco claro: os alunos, ao finalizarem o Terceiro Ano, não sabem por que diabos aprenderam Tipos de Rochas e Guerra Fria em uma mesma disciplina.
Logicamente, a Geografia não é a única disciplina que sofre com este problema. Mas, se a compararmos com Biologia, Matemática ou História, por exemplo, é bem mais provável que o aluno saiba melhor argumentar qual o ‘objeto’ de cada uma destas matérias que no caso da ciência geográfica.
A sensação que fica é que ocorre um mix de conteúdos aleatórios que, ao não poderem ser alocados em outras disciplinas, foram inseridos sob uma mesma matéria, tal como a genérica disciplina de ‘ciências’ do ensino fundamental.
E isto é um empobrecimento brutal da Geografia, cujas discussões teóricas apontam que esta dualidade aparente é tão compreensível quanto as especializações em tantas outras áreas do conhecimento.
Não deixa-se de ser médico ao especializar-se em neurologia. Não deixa-se de ser geógrafo ao especializar-se em biogeografia. Ou em geografia urbana.
Assim, nós, geógrafos, especialmente quando adentramos a sala de aula, devemos ter sempre em mente que, embora existam campos diferentes, a ciência geográfica é uma só, e esforços teóricos já nos mostraram alguns muitos mecanismos de compreender a nossa diversidade de campos de atuação.
E, levantar bandeiras como pertencendo à “geografia humana”, ou à “geografia física” é tão empobrecedor quanto doutrinário, é cego e sepulta elementos importantes da realidade que não serão apreendidas pelo dualismo puro.
De fato essa divisão é empobrecedora, mas é ainda mais empobrecedor a opção pelo marxismo como único método de análise das relações humanas e consequentemente sobre o meio natural. A divisão que vemos entre geografia humana e geografia física apenas é um reflexo e um desdobramento da divisão fomentada pela visão empobrecida e diria até, míope e limitadíssima de Karl Marx e seus seguidores e “releitores” posteriores. Sou geógrafa há 18 anos e só vejo a decadência desta profissão sobretudo no Brasil, por mais que muitos profissionais se esforcem, perdem espaço de trabalho porque nunca conseguem por em prática soluções eficazes em comparação com outros profissionais que olham o mundo como ele de fato é e não como Marx disse que era (ou deveria ser …). Há muito muito mais elementos que regem as relações humanas, econômicas e de utilização dos recursos naturais que passam por inúmeras outras questões emocionais e até transcendentais, que Marx e seus discípulos foram, e continuam sendo, totalmente incapazes de perceber.
Boa tarde colegas Geógrafos. Nilceia o seu comentário, foi perfeito.